Quem matou Roland Barthes?, de Laurent Binet

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Por Josué de Oliveira – A pessoa a que se refere o título do livro de Laurent Binet me traz lembranças doloridas: aquelas aulas chatas de Fundamentos Linguísticos da Comunicação no primeiro período da faculdade, onde aprendíamos o básico de linguística, semiótica e semiologia.

Nessa disciplina, além de Roland Barthes, também fui apresentado ao trabalho acadêmico de Umberto Eco (até então, só conhecia sua faceta de ficcionista), Julia Kristeva e Roman Jakobson, e ao longo da faculdade topei também com Foucault, Althusser, Deleuze, Todorov e um pouco mais de Barthes, autores importantes das áreas de Comunicação, Antropologia e Sociologia. Não garanto ter entendido a maior parte do que do que eles disseram, mas juro que tentei. Alguns ali escreviam difícil que só.

O último lugar em que eu esperava reencontrar esse pessoal todo era num romance policial. Quem matou Roland Barthes? (Companhia das Letras, 408 páginas), lançado em 2015, ano em que se comemorou o centenário do nascimento do importante crítico literário francês, veio me lembrar que essa gente não apenas existiu, mas conviveu e circulou pelos mesmos meios entre os anos 1970-1980.

Ao mesmo tempo thriller, homenagem e sátira, o romance de Binet mistura fatos e ficção num romance irreverente, a obra mais original que passou pelas minhas mãos em 2016.

 

Na trama, o autor fantasia com base em um acontecimento real – a morte de Roland Barthes, em 1980, resultado de um atropelamento.

 

O intelectual e professor acabara de sair de um almoço com François Mitterrand, candidato à presidência naquele ano pelo Partido Socialista. O factual se desliga da realidade a partir de uma pergunta: e se não foi um acidente, mas um assassinato?

A partir dessa especulação, Binet constrói um enredo rocambolesco com inúmeros assassinatos, espiões com dedos cortados e um misterioso clube que se reúne na calada da noite. Tudo parece girar em torno de um dos maiores segredos da intelectualidade ocidental: a sétima função da linguagem, aludida pelo linguista russo Roman Jakobson em seu Linguística e Comunicação. Enquanto as seis funções “oficiais” descrevem usos comuns e reconhecíveis, a sétima, apenas citada pelo autor, seria quase mágica, dando a quem a utiliza poderes inimagináveis de convencimento e persuasão – uma arma poderosa, portanto, pela qual muitos estariam dispostos a matar. O delegado Jacques Bayard é destacado para investigar o caso, e recruta o jovem professor Simon Herzog, que está por dentro das particularidades da vida acadêmica francesa, para guiá-lo.

Quem matou Roland Barthes? não é para todo mundo. São tantas histórias interconectadas, tantos assuntos tratados ao mesmo tempo, que o leitor pode se sentir confuso ou mesmo perdido. Por exemplo, o autor fala de conceitos de Barthes e diversos outros escritores com desenvoltura e suas eventuais explicações são dadas com a rapidez de um professor certo de estar lidando com uma turma de nível, no mínimo, intermediário. As pistas do crime se misturam a exposições sobre Semiologia, Filosofia da Linguagem, Comunicação. Além disso, Binet dá especial atenção à conjuntura sociopolítica da França de 1980, às portas de uma eleição presidencial, mesclando à trama capítulos que narram exclusivamente longas reuniões de gabinete entre políticos e seus assistentes, a respeito de temas muito específicos da época . A galeria de personagens, quase todos reais, é espantosa e pitoresca, por vezes caricatural. Por fim, a escrita do autor é bastante peculiar, cheia de frases longas e construções incomuns, bem diferente do que se costuma encontrar nas prateleiras das seções policiais.

Se essa descrição não te empolgou, bem, é provável que Quem matou Roland Barthes? não seja para você. O público para o qual Binet escreve certamente tem alguma familiaridade e interesse pelas obras e a vida de Barthes, famoso por estender a produtos culturais populares suas análises sofisticadas de cunho literário e sociológico (sobretudo na obra Mitologias). É quase impossível separar o entusiasmo pela trama de um interesse, mesmo que pequeno, pelo que ele escreveu e pensou. Esse conhecimento prévio ajuda a entender a miscelânea de referências bibliográficas e conceituais que o livro ostenta, seus diálogos por vezes obscuros e as muitas piadas internas que pontuam a narrativa. (Assim como na faculdade, não garanto ter entendido tudo)

O que é mais acessível no livro é a dinâmica entre Bayard e Simon Herzog, os dois cômicos heróis da história. O primeiro é um policial experiente, reclamão, impaciente com o monte de estudantes e professores, que considera uns vagabundos esquerdistas, com quem precisa lidar na investigação. O outro, um mestrando pacato que se transforma em detetive talentoso. São várias as passagens divertidas da relação dos dois, com destaque para os momentos em que Simon precisa explicar ao cabeça-dura Bayard algum conceito complicado de Barthes, Searle ou Derrida.

Mas o maior destaque é, de fato, Simon, que personifica a homenagem de Binet a Barthes e à Semiologia. Consistindo no estudo dos signos na vida social como um todo — e “signo” aqui deve ser entendido de modo amplo: qualquer coisa que contenha significado, que expressa algo, explicitamente ou não —, ela é convertida em arma para Simon, que se descobre capaz de fazer deduções brilhantes a partir de vestígios (signos) que qualquer um ignoraria. A progressão de Simon, de professor nerd a Sherlock Holmes francês (suas iniciais não são SH à toa) é um dos pontos altos da história.

Quando pessoas reais estão em cena, o tom do romance varia entre o absurdo e a homenagem. Michel Foucault, por exemplo, é expansivo e grandiloquente, sempre disposto a falar sobre biopoder ou a sexualidade humana, não importa a circunstância; Philippe Sollers, amigo de Barthes, nunca precisa fazer esforço para discursar sobre o único assunto que domina: ele próprio; Julia Kristeva, esposa de Sollers, é uma mulher fria e objetiva que balanceia a euforia crônica do marido; Umberto Eco é brilhante, alegre e beberrão. E essa é apenas uma parcela pequena dos personagens verídicos que circulam pelas páginas, envoltos nas situações mais fantásticas e sempre trazendo um pouco da carga de suas obras, que são honradas e respeitadas. Se Binet caçoa deles, é quanto a traços particulares, não tanto de suas ideias.

Os percursos da trama – a caçada pela tal sétima função, cobiçada por espiões búlgaros, misteriosos japoneses, a elite intelectual francesa e figurões da política – são sinuosos, inverossímeis, delirantes. Isso pode incomodar quem prefere enredos mais realistas, é bom apontar. As surpresas são poucas, embora o desfecho escolhido por Binet seja no mínimo interessante, costurando fatos históricos à seus excessos ficcionais. Mas Quem matou Roland Barthes? é, em sua essência, um olhar irreverente lançado a uma geração de pensadores cuja sombra se estende até os dias de hoje, goste-se deles ou não, que utiliza os recursos da literatura policial sem se render a eles, produzindo um híbrido anárquico entre o pop e o erudito.

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barthesTítulo: Quem matou Roland Barthes?
Autor: Laurent Binet
Tradução: Rosa Freire d’Aguiar
Páginas: 416
Editora: Companhia das Letras
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SINOPSE – E se o atropelamento que matou o crítico e semiólogo francês Roland Barthes não tivesse sido um acidente, mas sim um crime? E se o autor de Fragmentos de um discurso amoroso tivesse sido vítima de uma conspiração por estar de posse de um manuscrito contendo a sétima função da linguagem, última parte da teoria do linguista Roman Jakobson nunca revelada, capaz de convencer qualquer um de qualquer coisa? Nos meios intelectuais e políticos da Paris de então, em que transitam personagens como Foucault, Derrida, Deleuze, Althusser e Guattari, qualquer um pode ser o culpado….

 

(Imagens: Josué de Oliveira, andrewgallix.com, Divulgação)

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